13.5.07

Os fantasmas

[Pablo Picasso - Os dois saltimbancos]

He mounted to the parapet again and gazed out over Dublin bay, his fair oakpale hair stirring slightly.

- God, he said quietly. Isn't the sea what Algy calls it: a grey sweet mother? The snotgreen sea. The scrotumtightening sea. Epi oinopa ponton. Ah, Dedalus, the Greeks. I must teach you. You must read them in the original. Thalatta! Thalatta! She is our great sweet mother. Come and look.
Stephen stood up and went over to the parapet. Leaning on it he looked down on the water and on the mailboat clearing the harbour mouth of Kingstown.
James Joyce, Ulysses

Depois aninhaste-te no meu colo e disseste vou dormir. E eu passei a mão ao de leve pelo teu cabelo curto e encostei-me ao plástico da paragem do autocarro. A tua cabeça no meu colo tão perto. Tão perto de te dizer. Sentia-te a respiração lenta quente contra a minha pele. Como se não houvesse roupa entre nós. Queria baixar-me e deixar-te um beijo. E via a tua cara bonita serena. Os lábios abertos o sorriso travesso que nem o sono te tirava. Tinhas-me dito poucas horas antes que nunca foras tão feliz na tua vida. E eu acreditava. Nem eu. Nem eu tinha sido tão feliz. Não to disse. Não precisava. Não queria. As palavras matam. Mas disseram-to os meus olhos húmidos. Disseram mais do que eu silencioso queria. E tu sabias. Riste-te e de repente puseste um ar tão sério. Olhos cravados nos meus. Abri a boca para te dizer. E fechei-a. Porque não podia. Assim ficámos tanto tempo. Trocando palavras em silêncio. E eu quis estender-te a mão e puxar-te para mim e abraçar-te o resto da vida. No teu olhar rufia tanta solidão.

Havia dois fantasmas que nos impediam. O meu era a relação fracassada que me marcava ainda tanto. Aquela alma tão diferente que me revolucionara a vida. Os olhos doces e tímidos. Achava que ainda os amava. Apesar das evidências. Como podia eu amá-los ainda. Se me deixava agora afogar nos teus com esta força. E dos outros só guardava a doce recordação de tempo passado. Mas eu tinha vinte e seis anos. Vinte e seis. O que sabia eu de. E tinha-o à minha frente. E não o reconheci. Porque para reconhecer é preciso primeiro conhecer. Cego. Tomado de cegueira que tão funesta para mim e para ti será. Quando achei que era tempo de voltar à antiga relação onde achava que tinha sido tão feliz. E te abandonei. Para me arrepender. Demasiado tarde. Amargamente. O teu fantasma era mais duro. Não podias deixar a tua vida. Eu era um desafio demasiado grande. Assumir-me significava abdicares do teu mundo frio mas seguro. Ainda tentaste. Insinuando-o aos teus amigos. Em tom galhofeiro. Mas era tão inacreditável. Não passava pela cabeça de ninguém que. Nem pela minha. Apesar de tantos sinais. E no entanto. Hoje não tenho dúvidas.

Às vezes penso no que teria acontecido se. Porque a noite era propícia. Acabavas de me dizer que nunca tinhas sido tão feliz na tua vida como desde que estávamos juntos todos os dias. E eu tinha os olhos rasos de lágrimas de felicidade. E olhava-te mudo. Boca aberta que logo se fechava. E aqueles longos minutos olhos nos olhos. E se eu. Mas não. Acabei por baixar os olhos em pânico e dizer um qualquer disparate para nos aliviar. E continuámos a nossa estranha relação sem relação. Tantalizante. Eu sabia que tu. Porque era tão. E tu sabias que eu. E era uma tortura tão grande. Sentar-me ao teu lado. O teu cheiro. Sentir o teu hálito. E não te poder beijar. Abraçar.

Aquelas manhãs em que entravas silencioso no quarto onde eu dormia. Abanavas-me e murmuravas na tua voz rouca waky waky rise and shine. E eu acordava a rir. E um dia eu haveria de decidir que afinal era com os outros olhos doces que eu seria feliz. Porque. Não sei. Porque me tinha habituado a eles. Porque me tinha convencido de que os amava. E repetia-o a mim mesmo diariamente. E dizia-to. E tu deitavas-me uns olhos tristes e dizias que não eram aqueles os olhos que me fariam feliz. E eu olhava-te e não percebia. Que eu. Que tu.

Era preciso esperar tantas horas na noite morna. Sentados na paragem do autocarro olhando os faróis dos raros carros. Porque àquela hora a cidade dorme profunda. Encostados um no outro. Nunca estivemos tão perto. Sentia o teu calor confortável. E não dizíamos nada. Apenas sentindo a presença um do outro.

1 comentário:

ritagrama disse...

Well, well...
isn't it?
Go and see.
the slotgreen sea.



Goo'night, goo'night.