1.5.07

É só pelo sexo

[British Library, Harley MS 4751, Folio 40r]

C gostava de brincar. Não não. Não era perversa. Brincar mesmo. Jogar com as palavras. Era bonita de longos cabelos lisos e sorriso inocente. A voz era de menina pequenina. Olhar vibrante. C partia corações como se fossem bilhas de barro débil.

P era feio. Era estranho. Inconveniente, sobretudo. Vestia mal. Era gozado por todos. Ninguém gostava de P. P gostava de C. E de todas as meninas. Porque nenhuma menina gostava de P. Porque P não partia corações nem bilhas. A P partiam-lhe o coração. E P partia o coração a quem dele gostava. De pena. P era profundamente bom.

Não sei o que lhe passou pela cabeça. C respondeu a um dos regulares avanços desajeitados de P com uma brincadeira. Disse-lhe disparates. Inventou uma história. Que praticava regularmente sexo em grupo, com o namorado e comigo. Que era muito bom. Que o fazíamos tantas vezes. P acreditou. P era estranho.

_olá estás bom a C disse-me tudo contou-me tudo eu já sei de tudo eu também quero
_olá queres o quê
_tu sabes aquilo que vocês fazem eu já sei de tudo
_o que é que nós fazemos
_não te armes em parvo eu já sei de tudo
_olha P agora não posso falar ligo-te mais tarde

Olhei para J que almoçava comigo e disse _acho que o P se passou de vez. E depois telefonou-me a C.

_olá olha nem consigo parar de rir sabes o P olha eu disse-lhe
_ele ligou-me
_olha tu nem vais acreditar eu disse-lhe aquilo que tu escreveste naquele parágrafo ali em cima que começa por não sei o que lhe passou pela cabeça oh pá e ele acreditou
_és doida por favor diz-lhe que é tudo mentira que ele já me ligou e eu não tenho paciência para brincadeiras destas

Olhei para J que bebia café comigo e disse _tu não vais acreditar nisto. E depois telefonou-me o P.

_olá já sei que era tudo mentira
_como é que pudeste acreditar
_sei lá acreditei podia ser sabe-se lá nunca se sabe
_achas que eu e a C
_estás sozinho
_não
_então
_estou com o J
_ah então não podes falar à vontade
_posso claro que posso
_não podes não eu ligo-te mais tarde

Olhei para J abanei a cabeça e disse _há dias em que penso que o mundo todo ensandeceu.

_olá já estás sozinho
_estou diz
_eu fiquei a pensar naquilo
_em quê
_oh pá naquilo tu sabes da C que disse que vocês
_é mentira já sabes
_sim sim sim eu sei mas olha é que
_sabes que eu nunca
_pois sim mas olha eu estive a pensar
_tens de ter mais cuidado com aquilo em que acreditas
_eu sei eu fui parvo mas agora já sei mas sabes eu estive a pensar
_sim
_e queria perguntar se não querias mesmo assim fazer comigo
_o quê
_tu sabes
_não sei
_sim tu sabes sexo
_...
_não dizes nada
_não posso
_por causa do J
_porque eu estou comprometido sim e porque mesmo que não estivesse eu não estou apaixonado por ti
_não sejas assim tu sabes que eu gosto muito de ti não seria sexo gratuito
_...
_tu sabes eu até já disse à minha mãe que gostava de experimentar contigo porque tu
_não sejas tolo
_vá lá
_vamos acabar esta conversa pode ser
_vá lá
_P por favor
_é só pelo sexo eu não digo a ninguém por favor por favor

Nunca fiz sexo com o P. Porque eu não faço sexo pelo sexo. E porque P era profundamente bom. E sentia-me lisongeado por ele heterossexual me desejar. Mas eu não era capaz. P morreu pouco depois num acidente de automóvel. Pelo menos foi o que nos disseram.

1 comentário:

ritagrama disse...

TPC


Rever multiplicíssimas vezes
Billy Elliot.
Interiorizar as imagens.
Fechar os olhos.
Concentrar-se exclusivamente no ritmo.
Nos tempos. Nos silêncios.

Dar-se conta de que se pode escrever sobre tudo.
Indo ao fundo, fundo, fundo,
para depois deixar, único e singular, o brilho.




Margarita