15.5.07

Epistolário III

[Hoare of Bath - Cabeça de jovem]

Like a water creature
Plucked from its watery home and thrown on land,
This mind flaps.
Dhammapada - Os ensinamentos de Buda, III, 34
(tradução de John Ross Carter e Mahinda Palihawadana)

André ao seu querido Ρ.Α.

Leio-te com tanta alegria. A tua memória não me morre. Assombra-me os dias. E as noites. Doce assombração que me embala o sono. E não deixarei que me morra. Morrerei eu primeiro. E então estaremos mortos os dois. E ficará a tua memória na memória dos que ficam. Que não sei o que seria de mim sem a tua doce assombração. Vinda do nada onde não há tempo nem memória. Agarro-me a ti última tábua de naufrágio. Sabendo que tábua tão frágil não me pode suster. Às vezes também adormeço sem sonhos. E penso se será assim. Mas se penso é porque não é assim. Porque aí onde não estás não se pensa nem se sente. E acordo com vontade de não acordar e não estar.

Quando estou tão sozinho parece-me ouvir pedrinhas a estalar contra a janela. Levanto-me e vou ver e sei que não és tu. Mas vou ver. Porque a tua memória, amigo, é mais forte do que a razão. E eu preciso das tuas pedrinhas na minha janela. Como daquela vez. Em que estava pronto a desistir. Preciso de ti. Tanto. E fui à janela e tu estavas lá em baixo com uma pedrinha na mão. A rir. Fingiste que ma lançavas à cabeça. E rimos tanto os dois. Dizias que ele não merecia que chorasse assim. E eu não chorava. Chorei uma vez. Mas sim. Chorava por dentro, como as pessoas dizem. E eu nunca te vi chorar. Mas eu sei que choravas. Diziam-mo os teus olhos. Aquelas vezes em que nos calávamos a olhar um para o outro. E chorávamos os dois por dentro. Sem palavra nem soluço nem lágrima. E depois um de nós dizia um disparate e chorávamos a sério mas de rir.

Lembras-te daquela noite. Tinhas andado à pancada, como era habitual e estavas todo sujo de sangue. Com aquele teu ar rufia, barba de três dias, pose marialva. E eu soturno e calado. Ainda enervado da cena no bar. Ver-te ali pontapeado e a pontapear. E aos socos. Depois metemo-nos no táxi e pedimos ao homem para nos levar àquele sítio que adoravas apesar de. Mas não dissemos olhe é para o coiso. Dissemos olhe é para a rua tal. Os dois calados mal encarados com ar perigoso. Sim. Eu sei fazer um ar perigoso e tu sabes. És dos poucos que já mo viste. E quando o táxi nos deixou, enquanto pagávamos o homem disse olhem para aquilo, aqueles lolós. E eu engasguei-me e saímos os dois e chorámos tanto de tanto rir. Lembras-te. Sim, eu escrevo muitas vezes lembras-te. Lembras-te daquelas vezes em que levavas um bloco de notas e um lápis. E ias perguntando ao pessoal quem era mais bonito ou quem era mais bom, se tu se eu. Se a pergunta era sobre beleza, os resultados eram sempre renhidos. Ora ganhavas tu ora ganhava eu. Mas se era questão de se saber quem era mais bom, tu ganhavas invariavelmente, e com grande distância. Eu não podia competir com o teu corpo musculado do trabalho. E ríamos tanto.

Mas com isto desviei-me do assunto. É que tenho tantas saudades tuas e daquelas noites doidas. Como é possível ter caído no mesmo erro, perguntas. Porque eu tento reger a minha vida pela razão e não pelo coração. Mas não consigo. E penso sempre agora vai ser diferente. Agora sim. Agora é que é. Hábitos longos de sportinguista doente. Até no amor. Agora é que é. E depois nunca é. E eu entrego-me sempre. Abro o jogo. E depois caio desamparado. Cada vez de mais alto. E já não sei como proceder, amigo. Quando era obsessivo e exigente era porque era obsessivo e exigente. E eu sei que conseguia ser sufocante na minha insegurança. Mas aprendi com os meus erros. E quando ele voltou passei a controlar a minha insegurança. E dei-lhe total liberdade. Deixei de fazer qualquer exigência. Queres vir ter comigo? Não? Está bem, não faz mal. Dormes cá? Não? Não faz mal, deixa estar. Para ver a relação cair de podre. Sem futuro nem presente. Só passado. Depois veio este último. E de novo me abri completamente. E outra vez trepei a escada da felicidade até lá bem acima. E outra vez lhe dei a liberdade toda que havia. Do meu lado era como se não houvesse relação. Terei pedido duas ou três vezes que nos víssemos. Não mais. Não que não o quisesse ver. Ah, eu queria. Queria estar sempre ao seu lado. Mas como podia exigir-lho. Só se eu fosse muito egoísta. Só nos víamos quando ele queria. Nunca lhe pedi nem exigi nada. Apesar de tudo sentiu-se preso. A quê, ainda hoje não consigo entender, e acho que nunca vou conseguir. E de novo caí desamparado. Agora de mais alto. Citius. Altius. Fortius. Como nos Jogos. Já me esquecia de que tu não sabes latim. Mas não faz mal. É um pormenor apenas.

Perguntas-me se me lembro do que aconteceu há dez anos. Lembro. Como podia não me lembrar. Aonde quase cheguei. Aonde quase estou. E eu sei que. Não. Seria cruel dizê-lo aqui em frente a esta gente toda. Mas tu sabes. Tu viste. Tu estavas lá. E avisaste-me. E disseste-me tem cuidado estás a viver uma ilusão ele não te merece. E eu olhei-te tão zangado. Porque eu achava que amava. E não conseguia conceber a minha vida sem ele. Fechava os olhos e era ele que estava ali. E era com ele que me imaginava envelhecer e morrer. Que tolice. Eu sei. Era uma mania. Tinha sido tanto tempo. E depois ainda foi tanto tempo mais. Hoje sei. E devia ter-te ouvido. E devia. Tu sabes. Eu sabia que tu sabias. Eu queria que tu soubesses. Mas não to queria dizer. Porque eu sabia que. Nunca falámos disto abertamente. Nem vamos fazê-lo aqui. Um dia. No nada.

E de novo fujo ao assunto. Porque me dói falar disto. Porque há decisões a tomar. Tão duras. Necessárias. Insinuas se não se estará a passar agora o mesmo. Se valerá a pena. Se terei chorado em vão. E desta vez eu chorei. Tanto. Que pensava que não havia mais água dentro de mim. Não sei. E mesmo que soubesse não to diria aqui. Não consigo magoar as pessoas. Conscientemente. Agora. Nem sempre fui assim. Eu sei que te magoei. Muito. Mas também sei que me perdoaste. E eu não merecia perdão. E naquele dia em que tu. Eu soube que me tinhas perdoado. E nem então consegui chorar. Mas por dentro. Morri também eu nesse dia. Lembras-te. Lá estou eu outra vez. Lembras-te de quando fomos ver o Sporting. E te apoiavas em mim tão fraco já. E filmaram-nos e nós rimos tanto. Eu ria-me tanto contigo.

Não sei. Não sei se é a mesma coisa. Sei que agora dói mais. Tanto. Mas também sei que ganhei crosta rija. E já não me verás de olhos mortos e lábios arrepanhados muito tempo mais. Porque eu tenho a minha dignidade. E não mais me rebaixarei por ninguém. Porque eu sou eu sou eu. E valho muito. Olho de cima. Por mais que me doa o peito. Se me perguntas se ainda amo. Sim. Claro. Tanto. Que se ele me batesse de novo à porta eu abria como no primeiro dia. Mas eu tenho um prazo. Que se vai esgotando a cada dia que passa. Aproximo-me do não retorno. Com a cabeça cada vez mais erguida. Levanto-me e olho para mim mesmo. E a cada dia que passa me vejo com mais clareza. E sei que acharei quem me queira. انشاء اللَّه . Esqueci-me de te contar que ando a aprender árabe. Isto quer dizer deus queira e diz-se inxa' allah. E quem não me quer não sabe o que está a perder. E tu sabes. Eu sei ser arrogante. E tu sabes que eu sei. Foste tu que me ensinaste. Estás bom? Não. Eu sou bom. Lembras-te?

Amigo. Despeço-me porque me dançam lágrimas nos olhos. Não por causa dele. Por tua causa. Porque tu fazes-me tanta falta. Ainda tenho a tua garrafa de vinho por abrir. E assim ficará até eu morrer. E nos juntarmos no nada. Agora estou aqui sozinho. E já não há ninguém que me mande pedrinhas à janela.


Um abraço tão tão forte.
Adoro-te.
Α.Φ.

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