23.5.07

Epistolário X

[Chagall - Les amants sur le toit]


(cantado por Lhasa de Sela)

Ρ.Α. ao seu André

O meu calor e o meu cheiro. E assim dito e escrito parece que sou animal só corpo só carne. Quando só osso. E pó. Dito e escrito assim parece-me que só o meu corpo te. Parece. Mas eu sei que não. Porque isso sente-se. Lê-se-te nos olhos. E tu não és corpo. Nem era isso que via em ti. Tu sabes. Porque não é o corpo que te vale. E não era o teu corpo que eu. Não não. A cada carta mais pareço tu. Não te escrevia assim eu. E tu vais fantasiando. Não demasiado. Porque é quase tudo. Tu sabes. Eu sei. E tu não eras corpo. Então era o quê. Eram os teus olhos de aço. Tão frios impenetráveis. E eu sabia quando tu tremias. Porque tu tremes quando. E só quem passou por isto. Eu sei o que queres dizer. Só quem conhece o sabe reconhecer quando lhe passa à frente. Tu não soubeste. Não. Soubeste. Demasiado tarde. E agora que o reconheces de novo não em mim mas noutro lado. Agora vejo-te de porta fechada e chave na fechadura pronta a fechá-la de vez. Já sei que tens um prazo. Ontem ouvi-te dizê-lo. E que faltam poucos dias. E que tens uma data. Também tens direito. E que depois tudo estará definido. Que a espera termina. E viras as costas à praia. Quantos dias. Ah já sei. Não digas.

Fico contente. Não me interpretes mal. Não fico contente de te ver sofrer desta maneira cruel. Mas quando te fechares eu fico sozinho no teu coração. Não sim sim sim eu sei quais são os teus planos. Mas ouve. Eu sei que vou acabar sozinho no teu coração. Se não for agora será depois. Posição cómoda. Ficar com o fácil da relação. Tão bonito. E o resto adeus. Porque dá trabalho e eu não. Não. Não sou eu. Tu sabes. E eu sei. Tu já passaste por isto. Eu avisei-te. Mas eu sei que tu não deixas de sonhar. Que ainda aspiras o ar do teu quarto e sentes o cheiro que lá ficou e não sai. E eu sei coisas que tu não sabes. Eu sei que te viras na cama durante o sono e estendes os braços para o aninhares. Na tua protecção. E ficas de braços vazios porque já não está lá. Nem estará. Mete isso na cabeça de vez. Miser, misercule, desinas ineptire. Como o outro. E se não está nem estará o que esperas tu. Nunca esteve. Que esperas tu. Eu sei. Tu já decidiste. Já te vejo de cabeça tão erguida. Tão limpa. Não te arrependas. Porque já te vi chorar tanto. E não te ponhas com a alma triste até à morte. Porque aparecerá quem. Tu sabes. Há tanta gente a ler-nos. E se agora te parece tudo tão triste. Não te ponhas assim. Há quem precise de ti. Tu sabes. E expulsa da cabeça quem não precisa de ti. Porque quem não precisa de ti. Sim.


Não precisas de dizer que gostas de mim. Não o digas. Não to quero ouvir. Porque eu sei que sim. Não tens de mo lembrar todos os dias. Nunca to pedi. Porque eu também nunca te pedi nada. Só que estivesses ao meu lado quando eu precisasse de ti. Nem eu nunca te disse que gostava de ti. Disse. Disse que me fazias tão feliz. Mas isso não é dizer que gosto de ti. Não é preciso. Há coisas que se lêem nos olhos. Até nos mais duros. E tu sabes ler os olhos. E eu sei que é isso que te dói. E que então te doía. E que estás farto de ler nos olhos e depois. Acabas sempre sozinho. Mas tu sabes. Je n’ai pas peur de dire que tu me fais peur avec ton espoir et ton grand sens de l’honneur. Canta essa Lhasa. É verdade. Metes-me medo. Tão seguro por detrás dessa timidez e dessa tristeza. Tão forte. Sim sim sim eu sei que tu agora levantas vinte e oito quilos repetidamente. Mas tu sabes. Não é disso que estou a falar.

Entre toi et le diable j'ai choisi le plus confortable. Não negarei. E eu sei que também é isso que te dói. C'est que entre toi et le diable on choisit toujours le plus confortable. Talvez seja tempo de passares a ser confortável. Porque claramente o problema é teu. Porque ninguém atura um tipo como tu. Só eu. E tu sabes. Tu cansas. Tantas leituras. Tu não existes. Tu não és normal. Olha à tua volta. Desconfortável. És. E tu sabes. E tens de escolher. Porque assim não. Não tenhas a tentação de pensar que és melhor do que os outros. Não és. És desconfortável. Sozinho. Tu sabes. Para quê ainda.

You love a man who's afraid of you. Larga. Deixa. Deixa. Foge do deserto. Dos espinhos. Foge. Deixa. Porque tu também tens o direito. De fugir. De escolher o mais confortável. Não virei mais vez nenhuma dizer-to. Tu já sabes. E eu fico contente. É o primeiro passo para ficar sozinho no teu coração. Porque só eu suporto o teu desconforto. Porque eu já não sou. E por isso já não tenho conforto. Nem desconforto. E tu sabes que eu nunca tive medo de nada. Nem de ti.

Adoro-te
Ρ.Α.

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