20.5.07

Epistolário VIII

[Bosch - São João Baptista no deserto]

En tus manos la mi vida

encomiendo condenado.
O piedad mereçida!
Por qué m'as desanparado?

(anónimo espanhol, s. XV/XVI)

André ao seu Ρ.Α.

Nem isso. Nada. Não peço. Fico-me com aquilo que me querem dar. Por isso nada te pedi. E me mantive sereno ao teu lado sentindo o teu calor o teu cheiro. Baixando os olhos quando mos surpreendias. E é disso que tenho saudades. Porque sim é verdade. Estás sempre na minha memória. Todos os momentos. Mas se fosse só fraternal. Se fosse só fraternal bastar-me-ia a tua recordação. A tua presença no meu espírito. O saber que estavas ali. Mas amigo. Não é fraternal. É mais forte do que isso. E não me basta a tua memória. É isto que distingue o fraternal do outro. E só quem por ele passou. Mas sentir o calor do teu corpo. O teu cheiro. Perto de mim. Mas perto de mim. Isso chegava-me. Não te pedia mais. Nunca to pedi. Nem com os olhos. Porque sabia que não mo podias dar. Mas saber que estavas ali ao meu lado. Que te podia abraçar e dizer o que nunca te disse que gosto de ti. E agora é tarde. Tão tarde. Tu passaste por mim e eu não te vi.

Foste és serás. És o meu barco. Onde me recolhi quando me expulsaram. Onde me chamaram hóspede querido não náufrago roto. Onde agora me recolho de novo abandonado. Vontade de não mais sair. Não tenho já os olhos no horizonte. Repouso-os neste barco morto seguro. Onde barqueiro invisível me passa a mão pelos cabelos desgrenhados. E me sussurra ao ouvido esquece ignora corta não fales não escrevas não dês importância a quem não ta dá. Eu vou fechando os olhos salgados e murmuro talvez não sei se calhar não pares desculpa. Eu vejo barco e sinto o barqueiro. Nunca me quiseste magoar. Dizes não há barco nem barqueiro. É que não me queres preso a miragem morta. Não me queres miragens. Nem eu mas quero. E tenho passado a vida agarrado a miragens que se desfazem cruelmente quando me baixo para lhes tocar. E enterra-se-me a mão na areia escaldante. E eu prefiro miragem morta que me adora e me acarinha e me refresca. Porque a miragem viva. Sabes aquela canção da Lhasa de Sela. He venido al desierto para irme de tu amor. E eu volto ao deserto.

Monge estilita. Na Síria havia tantos. Aqueles que viviam no cimo de colunas de pedra. Em grego antigo coluna diz-se στήλη, stêlê. Grossas colunas de pedra. Para onde lhes subiam comida escassa e água quase nenhuma. E ali viviam uma vida sob a violência do sol do deserto e o gelo da lua. E tinham miragens e visões. Mas acorrentados à coluna não as podiam seguir. Pudesse eu subir a coluna de pedra tão alta que não me deixasse ver o chão. Agrilhoado. Não fosse subir-me uma miragem pela coluna e o meu espírito fraquejar. E volto ao deserto embarcado em barco seco. Que tú nunca mereciste lo que tanto quise dar. Não estou a falar de ti. Porque tu mereceste tudo o que te quis dar. Volto ao deserto e fujo do mar. Porque o mar mata. E eu não sei nele andar.

E eu dizia está quieto agora não. Porque eu achava que não tinha passado de um capricho. E tu estavas ali à minha frente e eu não te via. Cego da ilusão em que me arrastei durante tantos anos. Mas tu dizias-me. E eu não te ouvia. E sentia a tua respiração no meu pescoço e não queria senti-la porque sabia que não era capaz de lhe resistir. Amarrado agrilhoado a coluna de pedra no deserto. E não era miragem. Porque eu não podia viver sem as tuas palmadas nas costas sem os teus sorrisos traquinas sem os teus disparates. E não sabia. Agora sei. Ou será miragem do meu coração rasgado sangrado. Já não sei. E não quero saber. Porque não mais me agarrarei a miragens. Que el desierto es más tierno y la espina besa mejor. Não me mostraste tudo o que valias e eu sei e eu sabia et excrucior. Porque eu não te dei tempo e te enxotei quando achei que regressava aos braços do amor da minha vida. Et excrucior et excruciabor. E eu sei que te magoei tanto. Não quero pensar nisso. Porque me dói tanto. E não há maneira de o remediar.

Não são comparáveis às tuas as minhas. Eu sei. E penso nisso nos meus momentos mais negros. Eu não sei o que é ser infeliz. Porque eu não estou doente. Porque eu não tenho as dores que tu tiveste. Nem morte aprazada. Não sei o que dói mais. Se as dores. Se ter a data da morte marcada. E eu não sei como tu. E relativizo todos os dias as minhas miseráveis dores quando me lembro do teu sofrimento. E eu não posso sequer ter uma pequena ideia do horror das tuas dores. Sinto-me depois tão mesquinho. Porque aquilo que me esmaga é nada comparado com o que te matou. Pudesse dar-te a vida. Dar-te.

Não olhei ainda bem para mim. Tens razão. Mas já me ergui. E começo a olhar em volta. De mais alto agora. E olho-me nos olhos também. Ainda não de frente. Mas olho. Et quod uideo bonum est. A porta já está fechada. Não trancada. Não barricada. Porque ainda a queria ver abrir-se. E ser feliz. Mas o tempo vai passando. A chave está na minha mão. Em breve estará trancada e barricada a porta e escondida. O barco não o afundo. Não é preciso. Eu virei as costas ao mar. E os dias vão passando. E eu vou deixando para trás o mar e o barco e a porta e todos os símbolos. Até um dia em breve os perder de vista. Em breve. E depois, amigo, será definitivo. E tu sabes. Hélas.

Enquanto te escrevo sinto-te como dantes atrás de mim. O queixo pousado no meu ombro. A tua respiração no meu pescoço. Eram dias luminosos. Lembras-te. Claro que te lembras. Hoje vou ver o Sporting. Já te contei que tenho lugar marcado desde que o novo estádio foi inaugurado? Vou ficar triste se não ganharmos o campeonato. Vou ficar triste se ganharmos. Porque tu não vais estar lá para nos agarrarmos num abraço sem fim e chorarmos os dois de alegria tanta. Um dia disseram-me que era possível amar duas pessoas ao mesmo tempo. Eu acredito que é possível amar uma pessoa e continuar agarrado a uma miragem. E eu, amigo, já não sei qual é a miragem. Porque nem sempre aquilo que parece.

Adoro-te

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